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Jardim Montanhês

Houve um tempo em que os moradores da Vila Jardim Montanhês, quando desejavam ir ao centro da cidade, dispunham de um itinerário: o coletivo saía do ponto final, percorria toda a rua Alípio de Melo, passava pela rua Moema e, finalmente, ganhava a rua Padre Eustáquio, chegando, assim, às portas da cidade.
 Depois, aconteceu o prolongamento da avenida Pedro II, paralela à rua Padre Eustáquio, dois quarteirões abaixo, facilitando muito o referido trajeto. Uma das duas linhas que serviam a Vila foi desviada para a avenida Pedro II, proporcionando, àqueles que desejavam uma viagem mais rápida, uma opção.
 Uma vez por outra, quando levava o almoço do marido, Rosa da Silva se valia do novo itinerário. Com a marmita a lhe esquentar as troncudas coxas, a esposa do Alcides passava, sem muito interesse, os olhos por aquelas bandas. Tudo era rotineiro e nada lhe agradava. Somente alguma batida de veículos lhe chamava a atenção. No mais, aquele vai-e-vem de marmita na mão só servia para aborrecê-la.
 Entretanto, certa vez, precisamente no dia em que se atrasara, assentou-se junto à janela e se dispôs a observar à sua direita. Era um dia quente de agosto e ela se sentia por demais indisposta. O ônibus corria veloz, aproveitando o asfalto da plana avenida. Em dado momento, Rosa da Silva julgou ver uma figura conhecida debruçada numa janela. O lance rápido modificou sua apatia e o sangue afogueou lhe o rosto. O resto do dia foi consagrado a confusos pensamentos acompanhados de imperceptíveis murmúrios de: “Quem diria! Quem diria!”
Na manhã seguinte, Rosa da Silva ainda vivia aquela impressão da véspera. Parecia preocupadíssima. Aprontou as crianças para a escola e, após preparar a marmita do marido, foi se arrumar diante do espelho.
Curiosa, preferiu o itinerário da Pedro II. Ansiosa, nem sentiu o calor da marmita. Outra vez, pôde contemplar a figura postada à janela. Foram segundos de observação, mas o suficiente para que ela pudesse confirmar as suspeitas do dia anterior. Rosa da Silva observou o seguinte: na janela, em mangas de camisa, acotovelava-se um homem aparentando cinquenta anos de idade. Mão no queixo, cigarro na boca, óculos escuros e olhar perdido no movimento da artéria. No fundo do quarto, pôde ver um guarda-roupa de solteiro.
 Aquela rápida observação foi, no entanto, para ela, uma observação mais detalhada, onde viu aquilo que os seus olhos não puderam ver da janela do coletivo. O quarto apareceu-lhe com uma nitidez impressionante. Uma cama de solteiro, tão larga que servia para casal, um guarda-roupa, um criado-mudo e, pregado à parede, um quadro religioso. Aquela incursão na memória reavivou sofrimentos, causando indignação a Rosa da Silva. E, assim, transtornada com as recordações, chegou à construção onde trabalhava o marido. Alcides, vestido grosseiramente, como exigia o serviço, ajoelhado, debruçava-se no assentamento de um piso. Quando percebeu a presença da esposa, levantou-se com alguma dificuldade e, com um movimento das espáduas, tentou consertar a posição da coluna. Foi surpreendido com a atitude da mulher: Rosa lascou-lhe um beijo no rosto, como que desejando, desta maneira, dissipar de uma vez aquela impressão negativa e dolorosa da janela do ônibus. Depois, aconteceu uma espécie de prestação de contas. Sentou-se num banco improvisado de tijolos e desandou a falar do custo de vida e de sua decisiva atuação em benefício das finanças do lar. Não contente com o lado material das coisas, fez sua apreciação moral da vizinhança. Alcides escutava, sem muito interesse, as considerações da esposa.
No dia seguinte, querendo prevenir um bom lugar no ônibus, Rosa da Silva dirigiu-se mais cedo para o ponto final. Pôde, então, escolher um lugar onde pudesse ver sem ser vista: era o quarto banco da direita, onde a separação das janelas ocultava-lhe grande parte do rosto. E foi dessa maneira que o quarto banco à direita entrou decisivamente na vida da mulher do Alcides. Novamente, ao passar pela Pedro II, a cena se repetiu. Rosa concluiu, acertadamente, que aquela presença era um hábito adquirido após o almoço. Naquelas onze e meia, com a marmita a queimar-lhe o colo, onde o feijão, a carne picadinha com quiabo e angu faziam o gosto do marido, foi assaltada por novas recordações. Numa fração de tempo, recordou seu tempo de meninota, quando, aos treze anos, solta pelas ruas, vivia a perspectiva de uma vida adulta. Era o tempo de “Rosinha”. Foi nessa transição que a figura postada à janela, o Augusto, entrou em sua vida. Aconteceu o encontro casual e ela se viu envolvida nas atenções daquele homem de quase trinta anos. Sua adolescência não resistiu ao galanteio adulto. Os seus caminhos se cruzaram tantas vezes que aquela amizade de rua evoluiu e ganhou a intimidade do quarto de Augusto. A família era coisa de mãe e filho. A entrada independente do quarto se mostrava adequada a esse tipo de relações. No quarto, um revólver preto, calibre 38, de aspecto sinistro, montava guarda de cima de um criado-mudo, reforçando ainda mais o temperamento másculo e violento de seu proprietário.
Na quarta-feira, Rosa da Silva viu-se favorecida por uma alteração no trânsito. Aconteceu uma batida e, por coincidência, o coletivo ficou preso quase de frente à casa do ex-companheiro. Rosa da Silva pôde observá-lo cuidadosamente, e as lembranças vieram em profusão; as velhas feridas reabriram-se dolorosamente. A cena passada há vinte anos veio-lhe à memória como coisa de ontem. Um encontro ocorrido nas proximidades de sua casa, com Augusto a lhe barrar os passos de maneira violenta:
 - Você aqui, Augusto?
 - Ontem, você mexeu em meu guarda-roupa...
 - Cuidado, Augusto, papai está por perto...
 - Não vim atrás do seu pai! Vim buscar minha carteira!
 - Não sei de nada... Juro por Deus!
 - Não se faça de inocente. Quero o meu dinheiro!
 - Por favor, Augusto, papai pode aparecer... Morro de medo...
 - Estou armado e, se for preciso, me entendo com ele. Ladra!
 - Pelo amor de Deus, Augusto!
 - Confesse de uma vez antes que seja tarde!
 - Minha Nossa Senhora!... Lá vem papai... Que vou dizer a ele?
 - Ladra!
 - Fui eu... me perdoe... amanhã, vou ao seu quarto e juro que pagarei tudo. Vai embora, por favor!
 - Te espero amanhã.

Finalmente, o trânsito se normalizou e o ônibus rodou novamente. Rosa da Silva, deprimida pelas lembranças, tinha os olhos cheios de lágrimas. Na cidade, andou desnorteada, como se a chantagem tivesse ocorrido naqueles momentos.
Na construção, como de costume, Alcides taqueava um cômodo.
 - Meu bem, a carne no feijão foi idéia minha. Você vai gostar.
 Na quinta-feira, Rosa da Silva despachou os filhos para o Grupo Escolar e ainda revivendo o passado arrumava a marmita do esposo. Envolveu a marmita num bonito pano, fechou a casa e partiu apressada para o ponto do ônibus. Não foi feliz. O quarto banco já tinha ocupante. Ficou para o próximo. E, tão logo o ônibus se aproximou da casa do Augusto, as recordações tiveram seqüências:
 - Sim. Confesso. Fui eu. Estou aqui disposta a tudo para pagar. Não sei quanto, pois perdi a carteira...
O revólver de cima do criado-mudo, enfeitado de balas espalhadas, facilitava as decisões da “Rosinha”. E as coisas aconteceram como ela prometera. Combinaram. A dívida seria paga a prestações. Naquela tarde triste, em meio de gemidos e dores, “Rosinha” pagou a primeira prestação. Manchado de sangue, o lençol fazia a vez do recibo.
Rosa da Silva chegou à construção inteiramente arrasada. As lembranças do sofrido passado haviam chegado ao seu ponto mais crítico. Tão descontrolada se encontrou que mal teve tempo de colocar a marmita no peitoril da janela e, fraca, se jogar nos braços do marido. Aí, então, o suor do trabalhador fez causa comum com suas lágrimas, misturando-se. Foi um dia perdido em sua vida. Ficou de lencinho na mão durante a tarde a enxugar as lágrimas e teve vontade de nunca, nunca mais, usar o itinerário da Pedro II.

 

II

Na manhã seguinte, Rosa da Silva foi toda meditações: inquieta, pensamentos profundos, exageradamente dedicada às coisas do lar, teve para o marido pensamentos carinhosos que chegavam às raias da proteção. Tanto procurou em suas coisas que acabou conseguindo dinheiro para melhorar o almoço. Macarronada e um pedaço de linguiça lotavam a marmita de Alcides. Por cima da tampa da marmita, embrulhada num impermeável, uma lasca de goiabada com queijo faria a surpresa do marido.
As lembranças das onze e meia deixaram-na ainda mais taciturna, evidenciando uma melhor compreensão do trauma sofrido há vinte anos.
 - Tenho uma surpresa para você...
 - Meu Deus, que será desta vez?
 - Calma, calma menina... Achei a carteira sem faltar um tostão.
 - Como?
 - Estava caída num canto do guarda-roupa...
 A entrega da marmita foi feita quase em silêncio. Rosa da Silva engolia seco em seu desespero. Também Alcides se mostrava sem vontade de conversar. Foi um almoço silencioso e uma despedida sem palavras. Rosa da Silva regressou pelo mesmo itinerário. Na Pedro II, a casa pintada de azul escuro estava completamente fechada, fechada como no dia em que pagou a quarta prestação, quando o corruptor revelou-lhe o achado da carteira. Nessa tarde, lembrava, estava sentada na beirada da cama e usava uma combinação de cetim preto.
Naquele vai e vem das onze e meia, quando Rosa da Silva passava pela avenida Pedro II, lá estava, sempre, o seu ex companheiro, e ela, escondida na separação das janelas do quarto e quinto bancos, mergulhava no desespero das recordações. Velozes como as rodas dos ônibus, aconteciam as terríveis recordações, as recordações do tempo do medo, quando ela fugia de tudo. Aos dezesseis anos, “Rosinha” dava mais um passo em sua amargura: abortava. Augusto quis fugir à responsabilidade da gravidez e acusou-a de infiel, mas, como ela era menor de idade, decidiu levá-la a uma “fabricante de anjos”. Com o segundo aborto, veio a conveniência da separação. A decisão foi precedida de uns tapas, acabando, de uma vez, com as tardes amorosas da Pedro II.

 

III

Como Rosa era ainda muito nova e de constituição forte, conseguiu se recuperar. Longe do sedutor, passou a uma vida normal. Desiludida e machucada pela vida, refugiou-se nos cantos de sua casa, até que a maioridade lhe deu consciência de sua condição humana. Reviveu nos footings das pracinhas e nos namoricos. Entretanto, eram namoros limitados pelo passo dado na casa azul da Pedro II.
 - Não, Mário, casamento é coisa séria, e eu, você compreende, ainda não estou bem certa... Acho melhor a gente acabar...
 - Mas, Rosa, não compreendo, ainda ontem... estávamos tão certos do nosso amor... ainda ontem, fazíamos os nossos planos... ainda ontem...
 E os Mário, os Antônio, os Roberto, os José passavam sem que Rosa tivesse coragem de chegar a um compromisso. Pelas madrugadas, lutava, querendo sobrepujar os preconceitos da época. Criava em sua imaginação a imagem de um homem diferente. Um Príncipe Encantado capaz de se sobrepor àquela situação, um príncipe de espírito superior capaz de compreender os lances da vida, de descobrir o verdadeiro valor das pessoas. “Eu sou igual às outras...” - repetia pelas madrugadas insones. Afinal, de tanto se martirizar, decidiu refugiar-se em si própria. A solidão lhe fez entender a vida e deu-lhe forças. Valorizou-se. No entanto, a ideia de um Príncipe Encantado não lhe abandonava. E, de tanto pensar, o seu príncipe se materializou. Somente não era um príncipe a cavalo. Era um príncipe que lhe apareceu de joelhos:
 - Papai, que ladrilhos mais lindos!
 - Não é tanto assim, Rosa. Alcides é que é bom assentador.
 - Capricha, então, “seu” Alcides.
 - Deixe por minha conta, menina.
 Aconteceu a simpatia pelo moço simples e aconteceram, também, os encontros casuais. Amadurecida pelos desenganos, Rosa reencontrou-se e foi sincera ao admirador. Antes que o amor ganhasse forças, revelou as suas condições:
 - Em minha vida, guardo recordações de um homem... mas são recordações de sofrimentos.
 - Não se preocupe, menina. O tempo conserta as coisas.
 Alcides tinha razão. O tempo, de fato, consertou a vida de Rosa. As obrigações caseiras, o primeiro filho, a luta do dia-a-dia deixaram-na em paz com a vida. Tudo foi esquecido nos doze anos de casamento, até que aconteceu o novo itinerário pela avenida Pedro II.
 De tantas idas e vindas à cidade, de tantas observações de seu esconderijo, de tanto remoer o passado, Rosa da Silva se saturou e os sofrimentos passados perderam seu vigor. O espírito do presente, a liberdade sem limites da época, influenciaram, decisivamente, suas conclusões. Por outro lado, a solidão de Augusto amoleceu o seu coração:
 - Meu Deus, como ele, hoje, está triste!... Na janela, Augusto, como de costume, soltava seu olhar pela avenida.
As lembranças do passado, os tiques de sua consciência, foram, aos poucos, esquecidos, cedendo lugar a observações mais concretas:
 - Mão sem aliança... Não se casou... Pobre, continua sozinho...
 Na quinta-feira, quando suas coxas eram esquentadas pelo arroz, feijão e almeirão, a mulher do assentador teve uma surpresa e ficou envergonhada de sua condição de mulher de vila, de entregadora de marmita. O seu “ex” estava vestido para algum acontecimento. Augusto estava de acordo com o figurino. Tudo nele demonstrava certo refinamento. Roupa moderna, barba escanhoada, gravata estampada, óculos raybam escuro e cabelos marrons de salão de beleza! Rosa da Silva espichou o pescoço de seu esconderijo e sorriu, encantada:
 - Que malandrão!... Verdade é que ele está um pão!...
 E aquela figura bem apresentada ganhou nova dimensão na imaginação da esposa do Alcides. A absolvição do “erro” do Augusto forçou uma comparação entre ele e o marido. Os dois foram pesados, medidos e olhados. A figura sempre ajoelhada do assentador tornou-se ridícula ante a elegância do sedutor. O aspecto físico do marido, desconjuntado pelo serviço, não resistiu à nudez antiga de Augusto. As mãos disformes e calejadas tornaram-se motivos de tortura e repugnância para Rosa da Silva. As noites de amor... passaram a ser uma demonstração de mau gosto ante as recordações das tardes amorosas na Pedro II. Afinal, como não poderia deixar de ser, aquela disputa na imaginação de Rosa da Silva apresentou um vencedor. Augusto retornava triunfalmente ao coração de Rosa da Silva, numa vitória límpida. Alcides perdera todas as batalhas das comparações. Colocado num pedestal de ternura, longe dos atritos provocados pela rotina, oriundos quase sempre de uma má situação financeira, Augusto, como diz a boca do povo, “dava show”! E Rosa da Silva, mais do que nunca, teve consciência dessa vitória. Evoluiu dentro do novo ponto de vista, procurando se libertar da rotina diária. Augusto passou a ser sua ideia fixa, sua fuga. A vaidade dos tempos de solteira retornou impetuosa. A infidelidade conjugal alheia se tornou uma forma de libertação.
 No dia em que Rosa da Silva embrulhou a marmita com papel fantasia e levava um almoço de arroz, feijão e omelete, estreou um vestido de fundo preto estampado com rosas vermelhas e folhas verdes salpicadas de amarelo. Para completar, grande parte da manhã fora gasta no salão de beleza da Vila. Demonstrando certa imponência, entrou no ônibus vazio, passou em revista os lugares e foi sentar-se no sexto banco à direita. Colocado num nível mais alto, sobre as rodas traseiras, o lugar oferecia uma oportunidade sem igual de ver e ser vista.
 E, quando Rosa da Silva passou pela casa azul escuro da avenida Pedro II, fez pose e deu uma olhada de rabo de olho. Pelo meio sorriso do acotovelado, teve impressão de que fora reconhecida. Chegou à construção irradiando alegria...

 
Manoel Gomes Júnior
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