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Depoimentos

Enviado por marina em 06/08/2012 15:00:00 ( 2159 leituras )

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Meu nome é Odair Ribeiro Neves, filho de Isabel Ribeiro Neves e Raimundo Cândido Neves, nasci em 07 de novembro de 1957. Da infância eu lembro é de jogar pelada na rua, nos vários campos de futebol que tinham no bairro, de brincar na enxurrada, no córrego da Pedro II, de brincar de argila, que a gente tirava do córrego, e aquelas brincadeiras quando não tinha luz elétrica nas ruas, como nego fugido. O Jardim Montanhês era quase um interior, porque as pessoas sentavam na porta de casa para conversar, para contar causos, então isso é um negócio que a gente não esquece.
A gente não nadava no córrego não, a gente brincava no córrego, porque na minha infância o córrego da Pedro II ainda tinha piaba, tinha peixe, tinha também a horta do seu Manuel, onde a gente ia roubar fruta. Tinha várias outras casas que a gente roubava fruta, mas a horta do seu Manuel tinha um pomar muito bonito, tinha laranja, banana, tinha de tudo o que você pensar.
A argila a gente tirava do córrego e dos poços das lavadeiras, tinha uma área onde as lavadeiras lavavam a roupa, e tinham vários poços d’água, então a gente tirava argila desses poços. O que eu gosto muito na escultura e que eu trago da minha infância é justamente esse período da minha infância que eu trabalhava com a argila, então eu retirava a argila branca e a argila preta da região, e eu já modelava nessa época, já trabalhava escultura com argila.
 A gente não era incentivado a criar brincadeiras, a gente era obrigado, porque a gente era de família pobre e não tinha dinheiro para comprar os brinquedos, então, a gente tinha que criar os brinquedos, não tinha outro jeito. Tinha uma fábrica de gaiolas em frente a minha casa, e aí sobrava umas rodinhas de madeira e  a gente fazia os carrinhos. Tinha pé de boi, um brinquedo muito interessante, você pega duas latas de leite ninho, faz um furo, amarra o barbante, enfia o dedão, e sai andando de perna de pau.

 

Escoteiros
No bairro tinha o grupo de escoteiro Jamon, 3° grupo de Belo Horizonte, regional  então eu era escoteiro. Quem fundou o grupo foi o Padre Henrique, o mesmo que fundou o grupo Padre Eustáquio, ele fundou esses dois grupos de escoteiros em Belo Horizonte. Foi também presidente da regional, e depois quando ele foi afastado da Igreja do Montanhês ele foi para a Formosa, e aí quem ficou sendo o chefe do grupo foi o Pedro. Eu fiquei dos 9 aos 23 anos, e o grupo foi umas das melhores coisas que podia ter acontecido na minha vida. Primeiro que o Padre Henrique era uma pessoa fantástica, então muito da minha personalidade vem dele, dos ensinamentos dele, do gosto pelos trabalhos manuais. Ele chegou a traduzir grande parte de um livro de Holandês para o Português, para eu poder aprender várias coisas sobre artes, que eu uso hoje, então isso foi fundamental.
 A partir do momento que ele viu a minha habilidade, eu tinha uma certa habilidade, eu já tinha adquirido com um tio, o seu Eurípedes, ele me mostrou esse livro, e aí falei com ele, “Eu não estou entendendo nada, não dá para ler nada disso aqui” aí ele falou para eu marcar as partes que eu queria ler, que ele iria traduzir pra mim, aí eu marquei no livro varias coisas que eu queria ler e aí ele traduziu e chegou a me emprestar várias ferramentas para eu trabalhar. Ele era um admirador fantástico das artes plásticas e da música.
 No grupo de escoteiros nós tínhamos reuniões semanais e algumas atividades sociais, então a gente estava sempre ajudando  famílias carentes a construir barracão, se uma pessoa estava precisando de uma determinada coisa a gente tentava ajudar, então a gente tinha um trabalho que era muito legal, inclusive tem um caso de um escoteiro que tinha problema de audição e a família não tinha condições de comprar o aparelho auditivo, e mesmo assim ele resolveu ser escoteiro, e aí resolvemos que iríamos comprar esse aparelho para ele, então a gente catava papel, nas gráficas, resto de papel, e ia armazenando até a gente conseguir comprar o aparelho. Além disso, quando eu cheguei a ser chefe de tropa Junior eu fiz um trabalho muito interessante, era um trabalho de união das famílias, que é uma coisa muito difícil de acontecer, uma reunião de pais. Eu fiz um trabalho muito legal o e deu um resultado fantástico, porque eu tinha 36 escoteiros, e uns iam muito mal na escola e outros iam muito bem, então eu resolvi fazer um encontro desses escoteiros, então quem era bom em matemática ensinava quem tinha dificuldade, e teve um ano que todos passaram com notas excelentes. Então isso foi um negócio fantástico, infelizmente não deu para continuar. Eu acho que o grupo acabou por falta de alguém com pulso, alguém com interesse de levar o trabalho adiante. Fiz muito acampamento, jornada, a gente estava sempre fazendo, uma das que marcou mais, porque papai não gostava, não queria, então uma vez nós fomos escondidos, eu e o Oscar, no acampamento Engenho Nogueira, onde é a Usiminas hoje, e aí quando a gente estava chegando lá, atravessando a cerca, o papai já estava atrás da gente, e levou a gente embora.


Escola
Eu estudei no Grupo Escolar Professor Moraes, perto do campo de aviação. No segundo ano primário, eu gostava de atravessar o campo. Os guardas não nos deixavam passar por lá, mas a gente entrava escondido. Se os guardas pegavam algum menino no campo, eles o mandavam lavar banheiro. Eu fui pego uma vez, jogando bola. Eles estavam esperando a minha família ir me buscar, só que ninguém foi. Nesse dia, não me colocaram para lavar banheiro. Quando eram quase sete horas da noite, eles resolveram me soltar. Porém, eu não quis ir embora sem a minha bola, a única bola de couro que eu havia ganhado na minha vida, um presente de Natal da minha irmã. Fiquei lá até eles perceberem que não tinha mais jeito. Finalmente, mandaram-me embora, mas com a bola furada.


Avião

Uma vez, eu e meu colega Nilson estávamos matando passarinho com espingarda de chumbinho no aeroporto Carlos Prates. Estávamos sentados, fumando um cigarro e, de repente, veio um avião. Nilson falou que o avião estava muito baixo. O avião foi descendo e descendo, na nossa direção, fora da pista. Corremos para a beirada do campo e vimos que ele não iria conseguir pousar. Saímos correndo pela lateral do campo, com medo de ele bater e atingir a gente. Pulamos num buraco e vimos o avião bater na beirada do campo. Descemos para ver o que havia acontecido e encontramos um corpo sem cabeça na valeta. Era do piloto. Acho que ele saiu pelo vidro do avião. Como a gente era menino, aproveitamos para roubar a roda do avião. Peguei a roda e a escondi em uma barroca. No outro dia, voltei e busquei a roda. A última coisa que fiz com ela foi dar um tombo num velho, sem querer. Eu estava descendo a rua de carrinho de guia, carrinho de rolimã, rolando o pneu. O avô de um amigo meu vinha descendo a rua também. Ele tinha um problema de corcunda e só andava com a cabeça baixa. O pneu escapou e foi embora. Começamos a gritar, a gritar, mas não teve jeito: o pneu bateu nas pernas dele e ele saiu rolando.

 

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Exposição das obras de Odair na Cidade Industrial, em Contagem

 

 

Barracão

A gente tinha um barracão lá em casa, onde moravam Osias e Osmar. Era lá que a gente os ouvia discutir política, música e arte, o que me influenciou demais. Depois, eu e Oscar também nos mudamos para o barracão. Acho que esse fato contribuiu muito não só na relação de irmão, mas na relação com a arte também, já que havia muitos amigos deles que eram ligados à arte, como Eugênio, Osmar, Paulinho e Vicente. O barracão teve uma importância muito grande para minha formação como artista.

 

 

 

A égua

Quando eu era pequeno, mamãe fez a promessa de só cortar meu cabelo depois dos sete anos. Meu cabelo era imenso. Havia um vizinho nosso, o Matavaca, que costumava amarrar a égua dele num poste, perto do córrego. Eu e meus irmãos fomos a uma padaria do outro lado do córrego. Os dois foram correndo na frente, e, eu, atrás. Eles assustaram a égua que estava amarrada no poste. Ela empinou na minha frente, eu caí, e ela me pegou pelo cabelo e me arremessou longe. Ela se virou novamente em minha direção, mas, como estava presa pela corda, não me alcançou. Uma vizinha me puxou e me tirou de perto da égua. Meus irmãos contavam esse caso e, até hoje, falam que a égua achou que o meu cabelo era capim!
 
Montanhês hoje
Para mim, o que marcou mesmo no bairro foi o movimento de escoteiro e o estilo de cidade do interior: todas as pessoas se conheciam. O bairro era diferente por isso.
A construção da Pedro II acabou com o bairro. Dividiu-o ao meio e acabou com o charme que o bairro tinha. Do lado esquerdo da Pedro II, acho que ainda existe um pouco daquela atmosfera mais antiga. Do outro lado, não existe mais nada. Ninguém conhece mais ninguém.
O bairro Jardim Montanhês, hoje, mudou completamente. Antes, podia-se deixar a porta aberta. A porta dos fundos da minha casa nunca teve tranca. A gente chegava de madrugada da rua, na fase da adolescência, e a porta estava aberta. Hoje, é impossível fazer isso porque o bairro mudou muito. Não tem nada do que era. Só algumas pessoas continuam teimando em ficar lá. É outro bairro, completamente diferente. Às vezes, a gente encontra um vizinho que não via há muito tempo, conversa, lembra o passado e resgata um pouco do que havia antes: a conversa de esquina, sentado no passeio. Hoje, ainda dá para fazer algumas coisas assim. Eu saí do bairro Jardim Montanhês com 24 anos. Voltei para lá agora, aos 45. Fiquei mais de 20 anos fora, mas ainda tinha uma ligação com o bairro, porque mamãe sempre morou lá.

 

Depoimento cedido em 02/08/2004
 

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