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Depoimentos

Enviado por marina em 06/08/2012 10:10:00 ( 1982 leituras )

Belo Horizonte já era capital, por mais pacata e acolhedora. Com muitas árvores, ainda era "Cidade Jardim", com um invejável clima de "Cidade-Saúde" e muito distante da violência e do moderno. Os bairros mais próximos tinham algum comércio e eram atendidos pelos "bondes" (sistema de transporte sobre trilhos movido a energia elétrica, diretamente conectada por linha aérea que fazia o mesmo trajeto sobre trilhos). Aos mais distantes (e, naquela época, cinco ou seis quilômetros eram uma eternidade), como ao nosso (hoje, "Jardim Montanhês"), que já fora chamado de "Celeste Império" e outros nomes, nem bonde vinha. O pessoal daqui, nossos pais e vizinhos (bem raros), deslocavam-se à pé por um quilômetro ou mais até onde o bonde parava.

Ares de roça. Bem perto de nossas casas, havia quem criasse gado leiteiro: saudoso Sr. Antônio, "Bacalhau", um velho magrinho, de fartos bigodes, que convidava o bairro (vila) inteiro para as festas juninas, com direito (inteiramente grátis) a uma festa junina com rezas, danças de quadrilha, muitos doces, canjica, quentão e pau de sebo. Não havia fogão a gás, geladeiras ou qualquer outro maior conforto; em contrapartida, havia muita liberdade, espaço, amizade sincera... A vila inteira era quase uma única família.

 

O poço das lavadeiras e a horta do Sr. Manuel, português
Minava ali, a dois quarteirões de minha casa, bastante e cristalina água, que era utilizada pelas lavadeiras "profissionais" e por nós (mormente, na época de estiagem) para cuidar das plantas. O escoamento da mina corria para a grande horta do Sr. Manuel Português, somado com o de outra que brotava perto de onde hoje passa o anel rodoviário, próximo de sua confluência com o atual final da Avenida Dom Pedro II. Com essas águas, adubo animal (que era fácil obter na época) e muita dedicação do velho português, ali eram cultivadas variedades de verduras, que a vizinhança comprava colhidas na hora! Maravilha!


O visual da nossa infância

Quase todos os lotes eram cercados com arame farpado, e, nossas casas, quase na totalidade, erguidas com adobe (tijolo feito com capim e barro, extraído das valas), pretensas fundações onde eram colocadas, pedra sobre pedra, caseadas entre si, pois não havia cimento. As paredes tinham acabamento de barreado e cal virgem, que não representava reforço, apenas estética, capricho ou higiene. Os marcos, portas, esquadrilhas e janelas eram feitos de madeira bruta; vidros e pinturas eram quase vaidade, e quase não se via. O piso era de tijolo rejuntado sem capeamento. Também raras eram as casas com forro, e o telhado de "capa de cangaia" sobre cumeeiras, terças e reguada de madeira roliça (in natura). A água era conseguida com a perfuração de poços até o lençol freático, retirada quase sempre por sistema de "sarilho" (pedaço de madeira roliça, apoiada sobre duas forquilhas, contendo, em uma das pontas, uma manivela improvisada, com a qual tracionávamos a corda com a lata cheia d'água). Daí, manualmente também, era levada até os tambores, (depósitos) para todo o uso doméstico. Para o banho, o normal era aquecer 50% da água a ser usada, em fogão a lenha, e, depois, adicionar outro 50% de água (para temperatura ideal) em uma grande bacia de latão. Chuveiro elétrico não existia. Era muito comum, além de alguma hortaliça caseira, a criação de galinhas e porcos. Havia muitos gatos, cachorros e árvores frutíferas, como mangueiras, abacateiros e várias outras, que faziam a alegria da molecada e atraíam pássaros, que, hoje, fazem parte de um passado distante. As ruas de terra, quando chovia, viravam um lamaçal cheio de poças d'água. As ruas, os lotes vagos e alguns campos de futebol amador, somados ao gramado do campo de aviação Carlos Prates, constituíam o cenário da liberdade e da diversão preferida pela maioria dos meninos da época. No meio de tanta brincadeira inocente, ainda sobrava espaço para as maldades: bodocadas em pobres pássaros (que, de vez em quando, quebravam uma vidraça), imitação de cobra (que era arrastada nas noites, quando passava alguém que queríamos assustar), entre outras. Das sadias, ficou a saudade do peão, da finca, do bente-altas, de soltar papagaios, sem cerol, e até das brincadeiras que incluíam as meninas. Dos papagaios e manivelas, a grande saudade do mestre tio "Zé Contagem". Três quarteirões abaixo da horta de seu Manuel Português, mais tarde transformada em  Avenida Dom Pedro II, havia um quarteirão cheio de eucaliptos, onde o senhor Gustavo tinha uma criação de abelhas e, por isso, vendia o delicioso mel ali produzido. Sua casa ficou conhecida como "Casa das Abelhas". O comércio, raro, era composto de "vendas" e bares. Entre as primeiras, (mais próximas de nossas casas) estavam a venda do Sr. Luiz, a venda do Sr. "José Mata Vaca" e a venda do Sr. Nagib. Havia, também, o bar do "Bigode", o bar do Sr. Tião "Capador de Porco" e o bar Império, do Sr. João (que ainda é vivo e já enterrou as duas primeiras esposas). Um pouco mais tarde, viriam os "cines" Progresso e Padre Eustáquio. A respeito de Padre Eustáquio, foi ele o fundador da paróquia que ganhou o nome de "Sagrados Corações", mas que todos conhecem pelo nome de seu fundador. Foi ali que muitos de nós fomos batizados e fizemos nossa 1° comunhão. A pipoca na saída das missas era quase uma obrigação.
Nota: Padre Eustáquio era holandês e, depois de suas obras, veio a falecer, no Hospital Alberto Cavalcante, vítima de uma doença transmitida pela mordida de carrapato, muito comum na época, devido à grande quantidade de animais como cavalos, burros, bois e outros hospedeiros desse bicho.

 

Acidentes aéreos e outros
Dentro e próximo dos limites do campo de aviação de Carlos Prates, aconteceram quedas de aeronaves e alguns acidentes com paraquedistas. Os acidentes automobilísticos, com bondes e cenas de violência, eram raros.

Havia espaço num raio de 10 a 20 quilômetros. Em algumas direções, havia até a possibilidade de caça de aves (jacus) e coelhos, coisa que o Sr. Dico Bombeiro (Sr. Raimundo, pai do querido amigo Osias), fazia com rara habilidade, com sua insuperável Rossi cal. 32.

 

De volta à origem
Meu saudoso pai, ainda casado com Dona Luiza (sua 1° esposa) e também acompanhado por seus dois filhos (Bernardo e Leão), veio da Alemanha para o Brasil. Era mais uma família que buscava a paz num país desconhecido, fugindo dos horrores da guerra. Em Bom Despacho, sua primeira estadia aqui, nasceu Rosinha, sua filha. Pouco depois, ficou viúvo e se mudou para Belo Horizonte, onde, mais tarde, conheceu e se casou com Dona Lilia (Maria das Dores), solteirona de 36 anos, que, em 29 de abril de 1948, deu-me à luz (fui o 4° filho de meu pai e o 1° da minha mãe). Na sequência chegaram meus três irmãos (José Carlos, Eduardo e Paulo). Meu pai aparentava boa saúde, mas abusava da alimentação, inadequada à sua idade. Realizou poucos sonhos e, do último, a aquisição de uma monareta, resultou num acidente, vindo a fraturar o fêmur de uma de suas pernas. Pouco tempo depois, faleceu (quando eu tinha 10 anos e, meu irmão mais novo, apenas oito meses de idade).
Nota: As dificuldades eram enormes, tanto que a maioria dos partos da época tinham a assistência de uma parteira (que era trazida às pressas, na hora "H"). E veja só, a avó paterna do meu caro amigo Osias, D. Agripina, salvo engano, que morava na Rua Carioca, foi quem ajudou minha mãe quando vim ao mundo.
Dos meus pais, herdei todos os caracteres de pessoa honesta, trabalhadora e sem vícios, sempre destacando a responsabilidade, mais o espaço onde construí minha morada, junto aos múltiplos esforços de minha esposa.

Do saudoso tio Zé, alguns aprendizados básicos e o gosto pelas pescarias (que, mais tarde, viriam a se tornar uma terapia que tento colocar em prática e aperfeiçoar). É muito difícil não lembrar com saudades, também, de minha avó materna, D. Olímpia (única que conheci), que me adorava. Na hora da "Ave Maria", às 18 horas, quase todos os dias, esses "bons fantasmas" me rodeiam, onde quer que esteja.


O tempo não perdoa
Os melhores momentos de quase todas as pessoas ficam para trás, com a infância. É muito engraçada a ansiedade pela maioridade, a curiosidade por ser adulto, como se isso nos trouxesse a sonhada liberdade (que nunca imaginamos como, de fato, seria árdua e, por vezes, cruel). Com o desenrolar do tempo e a perda dos alicerces da família: avós, pai, mãe, parentes e amigos, a vida vai perdendo a graça. Apesar de novas conquistas (e de sermos, em alguns momentos, muito felizes), creio que todos gostariam de ser eternas crianças, no aconchego de suas famílias, sem imaginar o ônus do tempo que sacrifica e transforma tudo e todos ao redor. Se pudéssemos corrigir e afastar todos os transtornos, faríamos um tempo eterno, de juventude, saúde, paz, amizade e inocência. Não sei se isso existiria em outro plano, mas tomara que haja.

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