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Depoimentos

Enviado por marina em 03/08/2012 17:30:00 ( 1967 leituras )

carlos_marinhoSou José Carlos Marinho, nasci em Ponte Nova (MG), no dia 28 de setembro de 1944. Meu pai, José Marinho, era dono de um açougue e, minha mãe, Leonor Marinho, ficava em casa. Depois de chegarmos ao Jardim Montanhês, em 1957, dois dos meus sete irmãos foram para o Rio de Janeiro. Mais tarde, eles se aposentaram e voltaram para o bairro. Hoje, moramos todos no mesmo terreno, no Jardim Montanhês. Apenas um irmão mora em outro bairro, em Belo Horizonte mesmo. Depois que me separei, voltei a morar na casa dos meus pais, que faleceram. Moramos eu e uma irmã solteira.

 

Minha mãe era meio índia, muito forte. Trabalhava demais, cozinhava muito bem, era muito alegre, rachava lenha e buscava água na bica. Ela era benzedeira. Benzia muito membros destroncados. Nas sextas-feiras, dia de futebol, vinha um "caminhão" de gente com dedo e tornozelo torcidos. Também vinham crianças com ventre virado, espinhela caída e mau-olhado. Ela aprendeu a benzer com sua avó, que passou para a mãe dela e depois para ela. Ela fazia aquilo de graça, não tinha isso como profissão. Era uma doação que ela fazia. Com isso, ela ficou muito conhecida aqui no bairro.
Já meu pai era calado, muito tranquilo. O tanto que minha mãe era tagarela, meu pai era sério. Se tivesse alguém em casa, ele passava, cumprimentava e entrava. Não se via mais a cara dele. Muita gente pensava que minha mãe fosse viúva, porque não viam meu pai. Ele ficava mais no quarto, vendo televisão ou mexendo nas gavetas.
Aqui em casa temos um fogão a lenha. Minha mãe fazia pão dourado, conhecido como rabanete, e também cozinhava muito orapronobis com costelinha e angu. Era comida de roça mesmo. A gente criava galinha, porco, só não tinha cabrito. Nós tínhamos muitas plantações, não tinha um pedacinho de terra sem plantar. Tinha o lugar das hortaliças, dos chás e só minha mãe cuidava. Ela dizia que, com plantação, tem que ter amor. Muita gente vinha buscar folha de chá. O dia inteirinho tinha gente chamando minha mãe para pedir remédio. Ela era muito querida no bairro, tanto que, no seu aniversário, ela não aguentava abraçar tanta gente.


Infância
No Jardim Montanhês havia muitos campos de futebol: Olaria, Palmeiras, Juventus, Vasco... Eu joguei nos times Olaria, Canto de Minas e depois no colégio Padre Eustáquio, na década de 70.
As moças faziam torcida, levavam suco, brigavam, xingavam e ficavam com dó quando a gente se machucava. A gente ia jogar mais para as moças. Foi uma fase bonita.
Nós também andávamos muito de bicicleta. Eu e meus amigos alugávamos bicicletas na rua Pará de Minas e íamos dar a volta na lagoa da Pampulha. Nessa época, eu tinha 14 anos. Eu engraxava sapato e vendia laranja na beira do campo para conseguir dinheiro para alugar bicicleta. Comecei a trabalhar cedo como lustrador de móveis, como ajudante do meu tio. Com isso, desde cedo, eu tinha meu trocado. A minha infância foi muito boa.


Jardim Montanhês
Minha família veio de Ponte Nova por necessidade. Ficamos alguns dias na casa dos meus tios, que moravam na Vila Celeste Império. De lá, mudamos para o  Jardim Montanhês, compramos um lote e fomos construindo aos pouquinhos.
O Jardim Montanhês era um bairro carente, nessa época. Não tinha água, luz nem transporte. A água ficava em uma cisterna e a gente buscava numa biquinha na Pedro II. Quando chegava a noite, ficava uma escuridão e quem morava mais longe tinha medo, por isso, quando saíamos para as festas, íamos em grupo. Para pegar o bonde, a gente tinha que ir para a Rua Pará de Minas. Para conseguir que a água subisse até a parte mais alta do bairro, foi uma luta. Tivemos que entrar com um processo na Copasa, companhia de saneamento de Belo Horizonte.
Havia um armazém pequenininho, que a gente chamava de venda. Tinha também a mercearia e o açougue. Quando precisávamos de roupa, íamos para o bairro Padre Eustáquio, que sempre foi muito comercial.
Nós tínhamos uma associação de bairro muito ativa. Chegamos a financiar uma radiopatrulha pequena para proteger o bairro. Depois, infelizmente a associação dissolveu-se.
Um referencial do bairro era a Casa das Abelhas. Tinha umas casinhas de madeira com as abelhas e, sempre que a gente ia para o campo, passava lá para ganhar um copinho de mel. Era a coisa mais linda. Não tinha muro nem grade. De longe dava para ver, no meio das taboas do brejo, as casinhas de abelha do Sr. João.
Acho que todo o mundo no bairro é uma família. Tem muita harmonia aqui. A gente quase pode dormir de porta aberta, porque tem vigia no aeroporto. Antes, na minha juventude, parecia que a gente tinha uma família grande, com várias mães e vários irmãos. Se a gente precisava sair para uma festa e não tinha roupa, vestia a camisa do outro, a calça do outro, o sapato do outro e ia.
Infelizmente, as melhorias no Jardim Montanhês foram só físicas, não humanas. Acabaram com os campos de futebol do bairro, não tem nem um campo para os meninos brincarem num dia de domingo. Tem quadras de grama, mas nem todo o mundo frequenta.


Escola
No Jardim Montanhês, frequentei o Grupo Escolar Eliseu Laborne e Vale e, depois, o Colégio Padre Eustáquio.
O Grupo Escolar era uma escola muito boa. A diretora era a D. Denise, mulher que tratava a todos como filhos, tanto que foi diretora por muitos e muitos anos, ficando até mesmo depois da idade de se aposentar. Lá, tinha merenda boa e o ensino era muito bom. O uniforme - azul e branco, com um emblema no peito dos alunos - tinha que ser impecável. A diretora olhava a gola de um por um. Quando ia algum político na escola, a professora avisava as mães para arrumarem o uniforme da gente. Antes de começar as aulas, nós fazíamos fila e rezávamos.
No dia Sete de Setembro, a gente fazia desfile no pátio da escola. A gente já sabia cantar o Hino Nacional, que vinha na contracapa dos cadernos, assim como os hinos da Bandeira e da Independência. Comemorávamos também os dias do Índio, do Soldado e outras datas importantes.
Na escola, tinha educação física e moral e cívica. Aprendíamos a respeitar os símbolos nacionais. A gente tinha que estudar tabuada, saber de trás para frente matemática, raciocinar, pesquisar e fazer redações. A escola era tão bem dada que a professora não permitia bagunça na sala de aula. A gente estava ali para estudar e saía sabendo tudo. Os alunos tinham que respeitar e, se não respeitassem, ficavam de castigo. Minha mãe dizia que, na casa dela, ela mandava, mas que, na escola, quem mandava era a professora. Se precisasse colocar de castigo, podia colocar.


Igreja
Eu participava do Coral na Capelinha de São Vicente de Paula, bem atrás da minha casa, e também era confrade, na Sociedade São Vicente de Paula. Nós ajudávamos os pobres com donativos e participávamos da reunião depois da missa, aos domingos.
De confrade, passei a ser secretário da Conferência e, depois, fui secretário do Conselho São Vicente de Paula do bairro. Eu sempre fui muito ativo, mas hoje só ajudo com doação.
No Jardim Montanhês, há também o convento das Irmãs Carmelitas. A gente o chamava de casa das irmãs enclausuradas. Elas não podiam conversar com ninguém. Comiam o que plantavam e diziam que elas dormiam em cama com prego, para fazer sacrifícios. Dizem que algumas moças que iam para lá eram bem de vida, que tinham se "perdido", e, na época, o pai tinha que esconder as filhas grávidas e acabavam mandando-as para o convento, que existe até hoje.


Aeroporto
Quando nos mudamos para o bairro, já havia o aeroporto aqui do lado com a escola de aprendiz de piloto e paraquedista. As casas do bairro sempre foram muito arborizadas, com muitos pés de abacate e, muitas vezes, os paraquedistas caíam nas galhas e se enrolavam. A brincadeira da gente era ver aquela chuva de paraquedistas no ar, correr e ver eles caírem. Eles ficavam pendurados nas galhas, caíam nas telhas. Isso era constante. Os bombeiros até faziam plantão e era a maior graça ver os caras se debatendo.
Uma vez, um avião entrou de bico num barranco. O cara errou a pista e veio de fasto. Ficou até bonito ele em cima do barranco. Na minha casa, que é do lado, nunca caiu avião. O pessoal sempre perguntava se caía, mas, graças a Deus, nunca. Acho que era o vento que tocava para a vizinhança.
Já aconteceu de ter mortes nesses acidentes. Uma vez, um avião caiu em cima do campo do Palmeiras. O piloto errou qualquer coisinha e o avião veio, bateu a asa na trave do gol, incendiou-se e morreram três pessoas.
Hoje, ainda funciona a escola de pilotos. Aos sábados e domingos, fica intenso o movimento de aviões. Quando eu era pequeno, pegava carona com os pilotos e dava uma volta com eles. Hoje, é preciso pagar.


Namoradas
Na minha juventude, a gente tinha que levar a moça em casa às nove horas da noite. Depois, ia sassaricar. As mães da gente, quando ouviam um zum-zum-zum de que a gente estava sassaricando com moça daqui ou dali, chamavam no cantão e perguntava o que a gente estava fazendo naquela rua. Se tivesse com má intenção, podia esperar.
A família das moças confiavam na gente. Entregavam elas para a gente levá-las nos bailes. A gente tinha que ir e entregar em mãos, com todo respeito. Não tinha nada que desabonassem as moças nem a gente. O namoro de bairro acaba em casamento. Eu namorei duas vezes com gente daqui e casei as duas vezes. Com a primeira esposa, tive Ana Paula. Com a segunda, tive Henrique.


Festas
A gente fazia muita barraquinha na Igreja, em dias de santos. Na época de Santo Antônio e São João, a gente fazia fogueira e dançava quadrilha. A festa junina durava o mês inteirinho. Além das barraquinhas, a gente ia no Clube Tremendal, nas matinês, aos domingos. Depois, a gente tomava banho e ia à missa das seis, no Padre Eustáquio. As festas no Sparta, clube de vôlei famoso, eram também muito boas. Havia um rapaz que tocava cavaquinho muito bem lá, o Valter.
Sempre tinha parque e circo no bairro Padre Eustáquio, num terreno vago. Nos fins-de-semana, a gente ia nos parques, circos e também no Cine Progresso, além de dar voltinha na pracinha São Vicente de Paula, no final da rua Pará de Minas. Era lá que eu fazia o footing com meus colegas, para saber de baile ou marcar jogo.
Tinha também as festas de congado. Meu primeiro sogro, Sr. Mário, era sanfoneiro no congado e na Folia de Reis.


Trabalho
Quem começou na profissão de lustrador de móveis foram meus tios. Devo a eles muita obrigação por causa disso. Hoje, dou serviço a oito pessoas. É uma profissão bonita, que eu gosto muito. Estudei, cursei Administração de Empresas, trabalhei num banco, mas depois voltei para a profissão de lustrador de móveis.
Adoro conhecer as madeiras, montar aquilo foi me despertando para a natureza. Cada madeira tem um nome, uma cor diferente. Aquilo foi me ensinando como a natureza é sábia. Existem madeiras que têm desenho que parecem ter sido pintados como um quadro. As fábricas fazem o móvel e a gente coloca na cor que o cliente quiser. Antigamente, era tudo manual. A gente usava a goma laca branca, tinha que ralar num ralo feito de lata de goiabada furada, deixar em cima de um jornal e ir trocando de jornal até sair a umidade. Hoje, em qualquer prateleira de qualquer loja, a gente acha já pronto. Só que a de antigamente era muito superior. Não fazia mal à saúde, não tinha tanta coisa química.
Eu trabalho por conta própria há 24 anos, e, hoje, emprego oito pessoas. Três são meus sobrinhos, parece que está virando tradição na família. Eles estão indo bem, estão aprendendo direitinho, ganhando seu dinheiro.
Meu tio está com 70 e tantos anos e continua trabalhando também. Um ajuda o outro, indica cliente, cede para o outro, o que é muito bom. Nós trabalhamos com amor.

 

Depoimento cedido em 10/05/2005

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