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"Gosto de ler sociólogos, antropólogos, filósofos, livros que levem ao questionamento. Foi assim que vi que não podemos ser só pessoas produzindo o que tem a ver com seu negócio, podemos levar cultura às pessoas que não têm acesso. Achei que eu tinha condição de contribuir, e decidi contribuir."

 

 

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          Luiz Amorim

 

 

Alimentar o corpo e o espírito. Por que não fazer do seu comércio um local de cultura? O jovem empresário Luiz Amorim inquietava-se com essa pergunta e decidiu agir. Uma atitude aparentemente simples, colocar uma pequena estante de livros em seu açougue, adquiriu proporções inimagináveis e tem levado cultura a locais inusitados em Brasília.

O começo

“Cheguei em Brasília com minha mãe e meus irmãos aos 12 anos, vindo de Salvador. Nos estabelecemos no Gama. Ela trabalhava em casa de família, e nós, filhos, ajudávamos fazendo bicos: já fui engraxate e pedreiro. Até que surgiu a oportunidade de trabalhar como empregado num açougue.”

Alfabetizado aos 16 anos, Luiz leu seu primeiro livro ao completar 18. Morava então nos fundos do açougue onde trabalhava. Economizava o salário, fechava a loja e passava a noite lendo.  Apaixonou-se pela filosofia. “O mundo se abriu para mim através da leitura. Tive oportunidade de ler muitos pensadores, gosto de ler sociólogos, antropólogos, filósofos, livros que levem ao questionamento.” Quando os donos do açougue anunciaram que venderiam o negócio, Luiz decidiu comprá-lo.

Uma das primeiras providências que tomou foi colocar uma estante com livros para empréstimo no açougue. “Era uma prateleira e uns 10 livros. Depois começamos as campanhas de doações. No começo eu ouvia muita ironia, ‘açougue cultural, esse cara é meio maluco’. Nosso país ainda é cheio de preconceitos, no geral, não se espera de um trabalhador que suja as mãos alguma sofisticação intelectual ou cultural.” A pequena prateleira foi logo substituída por uma estante, abastecida com livros doados por freqüentadores do açougue e amigos de Luiz.

 
O volume crescente de livros rendeu um episódio com a vigilância sanitária que resultou na expansão do projeto. “O fiscal tinha dois modos de analisar a questão dos livros num açougue: ou achar bacana e orientar o que poderia ser feito para nos adequarmos às normas – e não há normas que sequer façam menção à presença ou não de livros num açougue; ou de autoritarismo, proibindo por não ter argumentação. O fiscal optou pelo autoritarismo, tínhamos que desmontar a estante que ficava no açougue e desativar o projeto. A imprensa ficou sabendo da situação e a notícia gerou polêmica. Aluguei um espaço para colocar o que seria retirado do açougue, o que fez nascer a biblioteca comunitária. A solução definitiva veio através da Câmara Legislativa, que regulamentou as atividades culturais em diversos estabelecimentos comerciais. Corremos atrás de parcerias e hoje temos bons parceiros. Alguns deles sugeriram a criação da Ong para facilitar e organizar as questões jurídicas. Hoje estou à frente do açougue, da Ong e dos projetos.”

Pegar os livros emprestados no açougue sem custo, sem burocracia, sem preencher fichas, sem se identificar. E depois devolvê-los sem cobranças, sem multas, sem restrições, apenas tendo o cuidado de não deixar estragar. Para muitos, uma utopia. Para outros tantos, uma loucura. Para Luiz, um sonho colocado em prática, um exercício de cidadania. E por que não ir mais além?

Parada Cultural

“O projeto da biblioteca na parada de ônibus é simples. Mas dá trabalho. Passei dois anos pesquisando, estudando uma maneira de viabilizá-lo. A idéia veio de um estudo de filosofia, da sociedade conscienciosa, da anarquia - que é mal interpretada. As pessoas associam anarquia à baderna, e não era esse o sentido da proposta. O sentido era de que o estado seria ausente porque não seria necessária a sua regulação social. O cidadão seria tão consciente de seu papel, de seus deveres, que aqueles que não se adequassem ao comportamento da sociedade se retirariam dela por vontade própria. Segundo estudos da sociologia, seria um comportamento por constrangimento. O exemplo mais famoso é o do sujeito que usa o banheiro da rodoviária deixando-o imundo e, quando chega a um shopping, esse mesmo sujeito muda o jeito de usar o banheiro, sendo mais cuidadoso, não deixando papel no chão, zelando pelo ambiente. As pessoas precisam ver que sempre alguém passa, arruma, organiza, cuida, e isso muda a postura das próprias pessoas.”

Dividido em etapas, é o próprio Luiz quem faz questão de acompanhar cada uma delas. “Aceitamos qualquer tipo de livro por doação. Carimbamos todos eles para identificá-los. Colocamos um folheto com o regulamento dentro de cada um, com instruções que ficam também coladas nas próprias estantes. Temos um acervo que vamos revezando. Separamos os livros que ficam na biblioteca e os que vão para as paradas, sempre fazendo um rodízio entre eles. Arrumamos as estantes, recolhemos os que sobraram, colocamos novos e fazemos o acompanhamento com uma ronda."
 
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Regulamento do açougue cultural
 
 A primeira biblioteca foi instalada numa parada de ônibus na W3 Norte em junho de 2007. Luiz imaginava que só conseguiria implantar a segunda biblioteca em outra parada de ônibus 6 meses depois. “Eu ficava o dia inteiro na parada conversando com as pessoas, explicando como funcionava, arrumando os livros, para poder ver como elas reagiam. A aceitação foi tão mais rápida do que eu esperava que, em 6 meses, 10 bibliotecas funcionavam na W3 Norte. Hoje, quando o projeto completa um ano, temos bibliotecas em todas as paradas dessa via.”

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 Acervo do Açougue Cultural
 
“As pessoas previam tragédias que inviabilizariam o projeto: ‘vão queimar os livros, vão rasgar tudo, vão roubar as estantes, a chuva vai molhar e estragar os livros, ninguém vai devolver o que levar para casa’. Nada disso aconteceu. Agora falam que só funciona porque é em Brasília, que em outro lugar não ia dar certo. Não acredito nisso. O ser humano é igual em qualquer lugar do mundo, a essência é a mesma. A natureza não fez ninguém especial, diferente. Somos todos iguais, nascemos, adoecemos, crescemos, morremos. Seja no Tibete, em Brasília, no norte da Europa, na África, o homem entende um sorriso, um abraço, as pessoas se comunicam mesmo sem falar a mesma língua. O sol queima da mesma maneira o Bill Gates e um mendigo, não há distinção entre eles na essência. É um projeto simples, pode ser feito em qualquer lugar, por qualquer pessoa. Já chamou a atenção até em outros países. Uma consultora da Espanha vem conhecer para tentar replicar na União Européia. A Secretaria de Cultura do GDF pediu autorização para replicar o projeto nas estações do metrô. Nas cidades satélites já tem gente montando o projeto nas paradas e isso é muito bom, está irradiando. Depois que alguém já fez e as pessoas vêem funcionando, se sentem estimuladas a fazerem também, não ficam presas ao ‘não vai dar certo’ e decidem tentar.”

Cultura e cidadania

O T-Bone Açougue Cultural caiu na boca do povo em Brasília. A programação da “Noite Cultural”, às quintas-feiras, completou 10 anos e é bem ampla: lançamentos de livros, shows musicais, apresentações teatrais. “Eu poderia fazer esses eventos em qualquer outro lugar, mas no açougue gera discussão, é surrealismo: o músico e aquela vitrine de carne. Gera debate. Algumas pessoas já comentaram comigo que estão sentindo uma mobilização na cidade, um interesse pela cultura diferente do que era antes. Eu não me deixo levar por isso, mas acho bom que as pessoas se sintam assim.”
 
Luiz não se define como produtor cultural, nem mesmo como visionário. “Eu sou um observador, e claro que ler os pensadores me ajudou muito. Para mim não teria sentido ter uma formação acadêmica e viver apenas para desenvolver meu micro-universo pessoal, meu mundo. Temos um potencial de intervenção na sociedade muito grande, seja açougueiro, sapateiro, padeiro, todos podem fazer de tudo.” Ele também faz questão de manter a simplicidade em sua vida profissional e pessoal. “Não vivo só para o trabalho, me planejo para ter lazer, vida familiar com qualidade e trabalhar com satisfação.”

Os objetivos que Luiz Amorim pretende alcançar com os projetos culturais que pratica - e disponibiliza sem qualquer empecilho para serem replicados - são despretensiosos, porém ousados. “Não tenho interesse nem a pretensão de resolver a vida literária das pessoas. O mais legal de tudo é o debate que gera não os eventos em si, nem a biblioteca. Gosto de provocar o debate, e acredito que o papel da arte é levar ao questionamento. Não estou preocupado em ter um acervo com essa ou aquela opção, com essa ou aquela estrutura. Isso é papel do estado e eu não quero ser o estado. A biblioteca nas paradas tem foco principal na cidadania, mais do que propriamente na leitura e na qualidade da leitura. Quando as pessoas discutem entre elas se os livros serão rasgados ou não, essa discussão é cidadania. Olhar o título, ainda que não leve o livro, leva o sujeito a pensar ao menos ‘o que esse livro está fazendo aqui?’ E se questionar sobre as coisas é um jeito muito importante de participar da sociedade e de exercer a cidadania.”
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